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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O ADEUS MAIS PROFUNDO -

    I
Eu me lembro dessa história todos os dias de minha vida, ela começa e termina com demissões, se iniciando no dia em que mamãe perdeu o emprego.
Era uma sexta-feira de sol de novembro em 1969,  já passava das seis e meia quando ela chegou. Lá fora o vento soprava diante de péssimos dias diante dos conflitos decorrentes da ditadura, e ninguém diria que dentro de casa essa brisa entraria aos poucos... A brisa da ditadura? Não, apenas a brisa que ainda paira sobre tantas famílias em nosso país.
Mamãe estava com um semblante desanimado e com apenas um olhar pude notar que havia algo que lhe perturbava, que lhe preocupava.
Eu, muito menina, nem quis saber o que se passava, já estava atrasada para minha aula semanal de capoeira. Peguei minhas coisas e saí apressada, minha mãe nem respondeu quando lhe disse:
- Tchau, mãe.
Pensei em voltar, e perguntar o que estava acontecendo, mas aquilo não era cena de novela ou filme, era a minha vidinha de sempre, na verdade não esperava um tchau ensurdecedor, nem que ela me desejasse uma boa aula, mas só queria um tchau, que mesmo esperando mais um instante não escutei.
Como mamãe, papai também não gostava do meu esporte, hobby, cada vez que me despedia para ir ao centro comunitário, onde treinávamos, ele me dizia:
- E as aulas de balé, quando começam?
- Quando você tiver sua próxima filha... E com isso dávamos risadas e nos encontrávamos após duas horas.
Meu pai sempre me aceitou mesmo diante de todas as minhas limitações, acho que às vezes ele apenas não me compreendia diante de muitos aspectos, mas eu nunca  necessitei da compreensão de ninguém, pois aceitar não deixa muitas escolhas, além de compreender.
Após me despedir de todos, - quando digo todos me refiro à mamãe, papai, Gustavo e Carlos-, saí.
Gustavo e Carlos eram meus irmãos, ambos mais velhos que eu. Gustavo tinha vinte e dois anos, o dobro de minha idade, ele era solteiro e por termos passado por uma grande crise financeira, quando eu tinha apenas alguns meses de vida, ele perdeu dois anos escolar para ajudar no que podia, por isso ainda estava no terceiro semestre da faculdade de medicina. Carlos tinha dezesseis anos, estudava e tinha uma namorada, Paula, ela tinha quinze anos, cursava o primeiro colegial enquanto meu irmão cursava o segundo.
Na minha casa também morava Laura, nossa antiga empregada, todos nós adorávamos tê-la por perto, eu achava que ela era a mãe que eu precisava ter dentro de casa, enquanto meus pais trabalhavam, já a ditadura um dia decidiu que Laura era a mãe que precisavam ter dentro de calabouços, diante da crueldade dos militares, mas essa é uma história a ser contada.
Quando cheguei, naquela sexta-feira, já não havia mais sol, e eu mal imaginava que uma nuvem escura pousaria em nossas cabeças, havia um silêncio que não era nosso, eu sabia que devia, mas não queria perguntar o que acontecera. "Oi, pessoal"
Apenas o meu olá obrigaria mamãe a dizer sem dizer. Começou dizendo que tinha uma surpresa, e logo não quis saber o que era. Dizer que há uma surpresa quando na verdade o que havia eram lágrimas nos olhos? Hoje sei responder essa pergunta que surgiu mais rápido do que a resposta, pois demorou anos para que eu descobrisse que as mães, a maioria delas, dizem sem dizer, todas as vezes que não querem nos assustar, todas as vezes em que elas apenas querem nos abraçar e dizer que nos amam, depois nos botar para dormir, desejando-nos boa noite e bons sonhos.
- Minha filha, agora eu poderei ficar em casa com você, não ficará mais sozinha, isso não é bom?
Sim, era ótimo, mas eu não podia dizer isso, então respondi que não, eu não precisava mais dela em casa, não como antes, agora já não importava mais, ela poderia trabalhar sem preocupações. Foi quando ela me disse que não poderia mais voltar:
- Eu fui demitida.
E foi assim que todos nós nos demitimos daquela noite, indo nos deitar, sem boa noite nem bons sonhos.



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